quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

As fronteiras do Ide!



Pra. Rose Reis, ES
 A vida religiosa sempre foi algo complexo para as mulheres no mundo cristão (católicos, protestantes e, mais recentemente, evangélicos). Complexo porque há uma dissonância entre o que nós aprendemos do Cristo sobre o seguimento e suas responsabilidades, dos apóstolos sobre o que seja a igreja e suas formas de servir e o menosprezo milenar intrínseco às culturas em relação às mulheres. 
Recente relatório global, produzido por agências internacionais na área de economia e sociedade, após levantamento que cobriu a última década do século XXI, sinaliza que a maioria dos países não deu o salto civilizatório esperado na questão de gênero. Pelo contrário, em alguns, direitos regrediram, estigmas de inferioridade e mercantilização do corpo feminino aumentaram e, em apenas poucos, pequenos avanços, tímidos, foram detectados. Em especial, na questão da mesma remuneração às mulheres que ocupam cargos iguais aos homens.
Se no mundo dito "secular", esse século ainda não pode ser celebrado no caminho da dignidade e liberdade das mulheres, no mundo da religião, na experiência vocacional das mulheres, dentro da vida religiosa, estamos ainda mais atrasados na perspectiva dos alvos éticos, eclesiológicos e teológicos da cristandade para a dignidade e igualdade da vida. 
Talvez a ação mais pernóstica nessa questão da vivência feminina na vida religiosa é que, grosso modo, nenhum dos religiosos pensam que há algo errado. Para a massiva maioria, as mulheres exercitam suas vocações e seus papéis religiosos sem nenhuma interdição. No universo evangélico, por exemplo, a esmagadora maioria feminina nas congregações, as intensas atividades eclesiásticas e missionárias capitaneadas pelas irmãs, as missionárias sendo enviadas aos campos, as educadoras trabalhando e as musicistas atuando seriam sinais de que tudo vai bem. 
Um olhar pastoral mais sensível, e um olhar religioso mais crítico, apresentarão um cenário de tensões, silenciamentos, violências simbólicas, interditos velados, orientação teológica fundamentalista e gerenciamento de recursos manchados pela cultura sexista. A título de ilustração, compartilho dois fatos infelizmente corriqueiros no universo da religião evangélica, por exemplo. Um casal de líderes em uma congregação periférica era aparentemente sem problemas. Certo dia, a esposa chama parentes para socorrê-la e eles testemunham uma cena de violência simbólica e ameaças de violência física do marido sobre a mulher. Situação compartilhada no gabinete pastoral há anos e que, após o epísódio-limite, definidor do pedido de separação, provocou um novo gabinete, cujo acolhimento à esposa era esperado. 
Quando essa esposa, ameaçada ainda pelo ex marido decide depois de anos dar queixa na delegacia de mulheres, o acolhimento desaparece. Ela é julgada negativamente pela pastoral e veladamente instada, através do discurso religioso da submissão e da inferioridade feminina, a mudar de decisão. Nada acontece ao seu ex marido que justificado pelo discurso machista, que encontra eco, inclusive, na figura pastoral, continua suas atividades de liderança. 
Questões de violência doméstica, de abuso paternal, de assédio e pedofilia são mais frequentes do que gostaríamos de admitir. E ainda mais complexas de se cuidar na vida comunitária, porque são intencionalmente silenciadas e seus personagens femininos engolidos pela máquina de esconder verdades que age sob o manto da religião triunfalista.
Segundo fato. Na nossa cultura evangélica, missionários são uma não assumida subcategoria do ministério pastoral, isto é, são importantes, respeitados, mas não tanto quanto um pastor. E as missionárias, então? São admiradas, mas têm condições econômicas distintas dos colegas. 
Por anos, as religiosas missionárias e líderes locais são celebradas e elogiadas por não desejarem reconhecimento pelo ministério e serviço que desempenham. Atitude que no fundo maqueia a tensão permanente da vivência religiosa das mulheres em ministério, já que a vida ministerial é também permeada por trocas simbólicas, pelas relações de poder e em cuja relação, as mulheres não possuem a mesma posição que os homens, indubitavelmente. E qualquer líder sabe disso, seja nas reuniões de lideranças, entre os pares ou na vida denominacional.
A recente discussão sobre a militância de algumas de nós, não apenas para o exercício das vocações pastorais que recebemos - algo já imensamente grande e necessário - mas também pelo reconhecimento do título responde ao mascaramento histórico do duplo discurso sobre a vida religiosa feminina no mundo cristão: podem muito, mas não podem tudo! podem ter vocações, mas não todas! podem realizar a mesma coisa, mas não podem ser reconhecidas por executá-las! podem viver a vida religiosa, mas não podem tensioná-la! podem falar, mas devem calar!
 Temos ouvido que estamos nos preocupando demais com reconhecimento e que deveríamos trabalhar sabendo que Deus está nos vendo. Ora, é óbvio! A luta pelo reconhecimento é justamente insuflada porque trabalhamos, nos preocupamos, nos ofertamos, nos entregamos às vocações, sabendo que Deus nos aprovou e reconheceu primeiro.      
 Nós estamos indo! Mas queremos continuar indo reconhecidas pelo o que somos! Estamos lutando para aplainar o caminho das que virão, para transformar a comunidade cristã em uma comunidade de irmãos, de fato, e para denunciar que insulta os céus e violenta vidas o discurso velado da inferioridade feminina e da desigualdade social e religiosa que as mulheres em ministério vivem com maior ou menor grau de consciência, nas diferentes dimensões da vida cotidiana. Este debate é necessário, sim, mesmo entre os mais piedosos. Já que deseja-se que trabalhemos, mas ao mesmo tempo, que esqueçamos das dificuldades e interdições causados por processos humanos, pelas disputas dentro de uma tradição. Logo, as desculpas dadas e restrições eivadas de piedade à luta pelo reconhecimento das pastoras entre os Batistas, em particular, é uma fronteira ao cumprimento do Ide , necessitando ser ultrapassada o quanto antes. 



Pra. Aristina, MT

diálogo no museu da justiça