Quando abrimos o texto bíblico, poucas vezes escolhemos narrativas cuja personagem é feminina. Acredito que seja um reflexo da nossa
educação teológica que favorece e privilegia um anonimato feminino nas questões
do texto bíblico. É quase como se não existissem lições teológicas positivas a aprender com as
mulheres na Bíblia. Obviamente, isso é um erro. Então, naturalmente, os textos em
que as mulheres protagonizam sempre me solicitam. É o que acontece com Marcos
14,3-9.
Prefiro a narrativa de Marcos a de Mateus e João por dois motivos: o
primeiro, por ser Marcos o evangelho escrito mais antigo; o segundo, porque a
mulher nesse evangelho não tem nome e o evangelista faz questão de explicar aos
leitores aquilo que Jesus disse (v.8) sobre o ato da mulher. A explicação assinala a finalidade profética do gesto.
Uma das aproximações hermenêuticas da leitura dos evangelhos é encontrar a pergunta geradora da
história narrada, isto é, recuperar a pergunta que originou na vida da
comunidade a reunião daquelas histórias sobre Jesus em detrimento de outras.
Diante de Marcos 14, a pergunta “provocadora” da história pode ser recuperada
pela finalização dada por Jesus. Jesus ensina a todos os presentes, na casa
daquele homem considerado impuro, que o feito da mulher deveria ser lembrado
em todos os lugares onde as boas novas do Cristo fossem anunciadas. A história,
então, foi contada por causa de um pedido de Jesus: preservar os feitos da
mulher que o serviu de forma tão generosa e profética. Talvez a outra pergunta
necessária seria, por que para Jesus era importante construir essa memória? Intuo possibilidades de resposta. Ministério é serviço. Mas também é movimento. Mover-se, desinstalar-se, é
condição necessária ao exercício de nossas vocações e ministérios. Jesus disse aos seus outros discípulos e ao anfitrião do jantar que aquela mulher havia lhe
servido, realizado uma boa obra. E as obras que as mulheres executam no Reino
em geral sofrem com a crítica, o desrespeito e as proibições colocadas pelos
discípulos do Senhor, mas não pelo Senhor. Essa distinção é fundamental para a compreensão de muitos obstáculos à realização plena da obra que está em nossas mãos para fazer e que, para tal, exige a ultrapassagem de certos interditos culturais e religiosos.
O Jesus dos evangelhos tem garantido às mulheres o
espaço para servir. Por muito tempo descansamos nessa verdade sublime. Mas
chamo a atenção para o fato de que essa lição está incompleta. O que Marcos não
pode deixar de registrar como resposta a segunda pergunta é que Jesus censura
os que não entenderam, criticaram e tentaram impedir a boa obra daquela mulher
e isso também deve ser lembrado para que não se repita de novo na igreja do
Senhor. Mas como tem se repetido! E se o gesto da mulher foi profético para anunciar
a morte do Cristo e sua ressurreição, foi igualmente profético na coragem de
servir e construir uma memória sobre seu feito e sobre a tentativa de proibição
censurável dos discípulos de Jesus ao mesmo feito.
Ainda é importante celebrar, nesse tempo, a memória
dos feitos das irmãs em ministério, nos campos missionários, nas igrejas, em todo lugar, cumprindo a missão que receberam e as movimentam.
No entanto, também é necessário trazer a outra memória que o texto aponta:
a ação dos discípulos de Jesus em criticar, em tentar silenciar e invalidar o
gesto daquela mulher, foi censurada pelo Mestre no passado e continua sendo
censurável hoje.
Por que não registramos nossa memória? por que não registramos a memória completa? É preciso construir nossa visibilidade! Mais outro exemplo: alguns
discípulos tem usado um discurso de que as pastoras são ordenadas apenas
para a igreja que solicitou sua consagração, ou seja, elas não são pastoras do
ministério batista. E ainda outro: o silenciamento na educação teológica da
possibilidade das mulheres que fazem teologia serem também pastoras ao final do
curso, caso tenham essa vocação. Por que não fazemos um grande movimento memorialístico para dar memória de nossas boas obras, histórias ministeriais, seus
desafios e vivências, suas trajetórias vocacionais? E por que não evidenciar a censura dada por Jesus aos seus discípulos? Censura que se estende também aos atuais discípulos do mesmo mestre.