Conversa com mulheres da Bíblia: palestra do 2º Congresso de pastoras e vocacionadas da CBB

  
CONVERSA COM MULHERES DA BIBLIA: identidade, ministério e parceria
                                                                                                                         

Somos muitíssimo mais do que nos dizem que somos.
Eduardo Galeano

Introdução
De acordo com o Censo de 2010, 86% da população brasileira é cristã, distribuída entre católicos, evangélicos tradicionais e pentecostais. Mesmo considerando a questão dos cristãos nominais, este percentual configura o Brasil como um país marcadamente cristão. Uma outra pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), no período entre 1999 a 2009, sobre a questão religiosa, apontou para a diminuição do número de mulheres no catolicismo tradicional em contrapartida a um aumento da presença masculina entre os fiéis. Além de um crescimento do número de mulheres nos grupos evangélicos pentecostal e tradicional em relação aos homens. Uma leitura panorâmica desses dados revela, em relação à face da religião cristã no país, a feminização da experiência comunitária entre os evangélicos de forma geral.
Nada necessariamente novo, pois, desde sua “fundação”, o cristianismo tem sido uma religião “feminina” em termos quantitativos. Contudo, ele se transformou ao longo dos séculos em uma religião masculina quando consideramos as dinâmicas da estrutura institucional, os ministérios e a autoridade para as orientações gerais da vida cristã. Há uma propaganda do TRE muito instigante, veiculada na televisão no primeiro semestre de 2016, sobre participação feminina na política, que apresenta um coral com vozes masculinas e femininas como uma analogia da sociedade brasileira. A conclusão do comercial é que, embora a maioria da população brasileira seja composta por mulheres, a voz de que se ouve é majoritariamente masculina. Logo, quantidade não significa representação, nem participação nos processos decisórios em nenhuma instância institucional ou representativa de alguma coletividade.

Olhando mais de perto, então, para o cenário evangélico tradicional[1], a voz feminina da igreja não parece ser ouvida com a mesma frequência, hegemonia, legitimidade e autoridade nas questões de fé e da vida como as vozes masculinas. Mesmo que um crescente e empoderado protagonismo feminino esteja em curso. As mulheres na igreja têm pouca ou nenhuma voz nos processos decisórios institucionais das denominações ou nos processos decisórios comunitários nas diferentes formas de governo da igreja evangélica.
Alguém poderia apresentar como contra-argumentação das afirmações acima, o forte trabalho desenvolvido pelos grupos femininos dentro da comunidade de fé, como a união feminina, os círculos de oração, as SAFs, e mesmo as missionárias em campo. Mas a legitimação e autoridade sempre ficou circunscrito às próprias mulheres e/ou sob a supervisão de outras instâncias de autoridade. Por muito tempo, as missionárias desenvolveram seus ministérios até determinado ponto e sempre em piores condições de sustento, entre outras questões simbólicas, em comparação aos missionários. Logo, embora sempre tenha havido uma liderança feminina na história das denominações tradicionais, ela tem sido exercida de forma tutelada e circunscrita a espaços muito bem definidos, sem reconhecimento objetivo de vocações e suas consequentes titulações e controladas pelos aparatos institucionais de cada denominação.  

Preparando o terreno para a semente-Palavra

Os fatores que explicam esse cenário são histórico-culturais e não espirituais. Por mais difícil que seja pensar as questões da vivência religiosa como diálogo entre a imanência e a Transcendência, não é liberalismo teológico refletir seriamente sobre como nós recebemos a Palavra de Deus misturada na cultura humana e em nossa própria linguagem e experiência[2]. Portanto, por mais inquietante que possa parecer, a Palavra está na imanência, com elementos humanos, em linguagem humana.
O texto de Atos 15,6-29, que apresenta as tensões entre Paulo e os apóstolos, é bem ilustrativo dessa questão. A própria discussão entre eles que culmina na narrativa do concilio em Jerusalém, já revela como que para Tiago, irmão do Senhor, chefe da igreja em Jerusalém, e outros judeus conversos, era difícil compreender a pregação do evangelho de Paulo e a quem ela se dirigia. Os mesmos que acompanharam a pregação do Reino da boca do próprio Cristo, anunciando a Graça para todos os que creem e não apenas para os judeus, ainda tinham naquele momento histórico dificuldade em entender como o evangelho chegava com o mesmo poder e com os mesmos sinais na vida dos gentios.
O concilio convocado para discutir esse impasse faz uma afirmação final que corrobora a imanência do texto e de seu registro: os discípulos disseram ao final: “se parecer bem ao Espírito e a nós...” At 15, 28. Esperamos sempre que os servos e servas do Altíssimo cumpram as orientações do Espírito Santo de Deus, mas a Palavra e a vida demonstram que nem sempre há harmonização entre o Espirito e nós e que aquilo que parece bem ao Espírito pode encontrar em nós muita resistência para se concretizar na história.
Parece, então, importante apresentar, nesse desejo de ouvir as vozes femininas no texto, que a Bíblia enquanto livro escrito em linguagem humana, em contextos humanos, também reflete as condições histórico-culturais de cada momento em que os escritores viveram, assim como as tensões entre a realidade e o projeto do Evangelho.


Carlos Mesters fala da Bíblia como um livro feito em mutirão. Ela é um esforço coletivo de preservação de uma memória que se quer importante e inspiradora, além de reveladora da fé em Deus e no Cristo. É importante nos aproximarmos do texto com essa mentalidade de que o texto bíblico é diverso e que seus produtores e leitores são sujeitos históricos e, ainda, portanto, que o texto precisa ser historicizado. 



No texto bíblico, é possível analisar a distinção entre quantidade e participação das mulheres na religião, como estamos argumentando, ora como uma representação do cenário histórico-cultural que desenha um papel existencial, social e religioso na vida privada apenas, ora como o palco das tensões entre esse cenário consagrado e o cenário desejável da nascente cultura cristã. Por isso, a proposta de uma conversa com as mulheres do texto bíblico. Elas têm algo a nos dizer que ficou obscurecido pelas leituras hegemônicas realizadas pela própria religião cristã no curso do tempo e, à luz de nossas múltiplas resistências, não tenham sido escutadas como deveria e poderia.
Era possível começar essa conversa com as mulheres do Antigo Testamento. Escolhemos não fazer isso, porque por mais inspiradoras que sejam suas histórias, elas são apresentadas em uma análise geral de sua presença nas narrativas do AT, como exceções na vida pública. Elas não são a regra histórico-cultural para as mulheres na religião judaica. É necessário dizer, inclusive, que muitos estudos recuperam essas vozes e a conversa com elas ainda podem produzir bastante aprendizado. Mas a análise dessas mulheres no AT realizada no livro de Athalya Brenner (2001) “A mulher israelita: papel social e modelo literário na narrativa bíblica” são muito esclarecedoras.

No conjunto de textos da OHD (O livro de Juízes integra a Obra Historiográfica Deuteronomista (OHD), juntamente com Josué, 1 e 2 Reis e 1 e 2 Samuel. Acontece que, espalhados nesses textos, há uma herança de tradições populares, isto é, de histórias que eram caras ao povo, narrativas antigas, que fazem com que aprendamos ensinamentos importantes através da memória das mulheres de Israel.). Nessa obra imensa de reconstrução da história de Israel, há a menção de 23 mulheres que aparecem, segundo Elcio Sant’Anna, ou no espaço privado ou no público. Todos sabem a importância da mulher no sistema tribal, sobretudo, o papel importante das matriarcas na memória do povo e da nação. E, de fato, as mulheres não incomodam sendo a “rainha do lar”, porque cumprem um “modelo hegemônico de uma sociedade patriarcal”. O que é importante subscrever é o conjunto de mulheres que roubam à cena pública em momentos decisivos da história da nação (Raabe, a rainha de Sabah, a concubina estuprada e esquartejada, Dalila, a filha de Jefter, Ana, Bate-Seba, Jezabel, a Sunamita, Atalia, Hulda, Jael e Débora) e que foram seqüestradas de uma memória fundadora, inclusive no curso da nossa compreensão da religião e da história de Israel no AT.
Brenner assinala que as mulheres citadas no primeiro Testamento são exceções à regra. Elas são importantes e ocupam papéis na cena pública (rainhas, mulheres sábias, matriarcas, poetisas e escritoras, profetisas, mães de grandes homens, etc), mas as histórias estão singularizadas nelas mesmas. A experiência delas não é normativa e, portanto, não consegue ampliar o lugar da mulher do privado para o público, nem modificar a compreensão cultural que se tem dela no ambiente judaico, nem mesmo representar uma voz da qual não se tenha qualquer dúvida sobre sua legitimidade e potência. São exceções.

Nossa conversa sobre identidade e ministério, portanto, está em outro testamento. No novo testamento! No segundo testamento! Porque é nele que a presença quantitativa se torna presença decisória e formadora da religião cristã. É no novo testamento que as mulheres deixam de ser coadjuvantes no público e privado, exceção à regra, para serem co-participantes, tanto no privado quanto no público, do projeto cristológico e da eclesiologia conforme pensada por Paulo[3].
Um olhar atento ao ministério de Jesus e à fundação das primeiras comunidades cristãs demonstra como uma espécie de contra-cultura estava sendo gestada, o tal projeto do Reino. Não era apenas um tensionamento com a cultura vigente, era a construção de algo novíssimo, “não deste mundo”. No caso das mulheres, a cultura patriarcal do tempo inicial da era cristã – e ainda vigente - que empurra as mulheres para um papel existencial secundário e para um papel religioso limitado à lógica patriarcal começou a ser questionado pelo próprio Jesus, em seu ministério, e na constituição das igrejas primitivas, pelos discípulos e discípulas. A partir de Jesus, a identidade feminina é colocada lado a lado com a identidade masculina. Nem mais importante, nem menos importante.
Homens e mulheres que aprendem juntos, que trabalham juntos, que sonham juntos, que são sinal concreto da Salvação, como um aspecto da cultura do Reino de Deus. A identidade do crente, homem ou mulher, não tem distinção de nenhuma ordem. Jesus Cristo elimina as distinções. As categorias identitárias são suspensas em relação à identidade do discípulo e discípula de Jesus. Nem classe, nem etnia, nem gênero, nem idade, nem moradia, nada é considerado de maior peso na constituição identitária do novo homem e nova mulher, a nova humanidade em Cristo. Todos pecaram, a Salvação é pela Graça, o Espírito Santo é o sinal da presença do Ressuscitado em nós e a Igreja é a comunidade dos que servem e cumprem a vontade de Deus para si e a favor da construção do Reino. 
Então, a experiência discipular do caminho com Jesus equaliza a compreensão das identidades diante de Deus, ao mesmo tempo que se contrapõe ao olhar sócio-cultural-religioso.  

A Palavra-semente plantada no corpo-igreja
No preâmbulo da Declaração doutrinária da Convenção Batista Brasileira está registrado que os Batistas fundamentam suas doutrinas nos Evangelhos e nos demais livros do Novo Testamento. Faremos o mesmo nessa conversa com as mulheres no NT, naquilo que elas têm a dizer sobre identidade, ministério e parceria.
O texto selecionado é Lucas-Atos. Escrito como único texto (Lc1, 1-4 e At 1, 1-2), foi dividido em dois quando do fechamento do cânon do NT, para que Lucas composse os Evangelhos e Atos ficasse como um pano de fundo para as cartas paulinas endereçadas às comunidades de fé fundadas pelo apóstolo dos gentios, segundo o próprio registro de Atos. Essa divisão era uma proposta didática, sem dúvida. No entanto, a leitura conjunta dos dois textos é muito mais elucidativa na questão da presença protagonista[4] das mulheres na formação das igrejas cristãs e é dessa forma que nos aproximaremos do texto.
A edição pastoral da Bíblia, em seu comentário inicial, assinala que esses dois textos são “o caminho da salvação”, composto pelo “caminho de Jesus”, registrado no Evangelho de Lucas, e pelo “caminho da Igreja”, registrado no livro de Atos. Juntos, comporiam o caminho da Salvação. A ideia é interessante e, sem dúvida, as narrativas do caminho de Jesus e da Igreja em formação é o vislumbre da Salvação no sentido amplo da palavra.
Chama a atenção o fato de que Lucas-Atos é farto em narrativas e citações com personagens femininas[5] em posição pública e discipular. No início do texto, o escritor Lucas é o único a registrar que fez uma pesquisa exaustiva sobre os acontecimentos para apresentar, em primeiro lugar, a Teófilo. Nessa pesquisa exaustiva, a presença das mulheres[6] emerge com força.
A longa narrativa que abre o Evangelho, anuncia o nascimento de João Batista e percebemos elementos parecidos na narrativa do nascimento de Jesus. Zacarias e Isabel, José e Maria, Maria e Isabel, João Batista e Jesus. A forma como é apresentada essas histórias, meio que em pares, pode ser mais do que estilo, mas uma apresentação estrutural de como estão conectadas todas essas histórias e personagens femininos e masculinos, sem sobreposição.
Em Lucas-Atos, também, o Espírito Santo é o elemento de coesão da e na experiência com Jesus. Ele não é necessariamente apresentado como a terceira pessoa da Trindade, mas muito mais explicitamente como a força/poder que movimenta a todos. Todos estão conectados pelo agir do Espírito, homens e mulheres.
As parcerias não se limitam às narrativas iniciais. Na apresentação de Jesus no templo, o Espírito move Simeão para ir testemunhar o cumprimento da promessa sobre o Messias e, ao mesmo tempo, Ana, que servia a Deus todos os dias no templo, que igualmente testemunha, ampliando sua ação para testificar e anunciar o Messias. Lc. 2, 36-40. Os dois anciãos são tementes a Deus e conhecem a história de seu povo. Os dois testemunharam e cumpriram um papel importante na história deste início. Ana, profetisa, falou a todos em Jerusalém sobre o menino. As duas histórias estão entrelaçadas em igual importância. Mas, por que quase não ouvimos falar sobre Ana?  
No início do ministério de Jesus na Galiléia, o evangelista coloca lado a lado a história do homem possesso e da sogra de Pedro, do oficial romano e da viúva em Naim, de Jairo e a mulher com hemorragia. Da mulher que invade a casa do fariseu no jantar e unge Jesus com suas lágrimas. E, diante da incredulidade dos doze e, possivelmente dos leitores, o evangelista fecha a narrativa com o texto de Lucas 8, dizendo que além dos doze, algumas mulheres que haviam experimentado a cura e libertação acompanhavam e aprendiam com Jesus, além de Maria Madalena e Joana e outras que além de seguí-lo, o serviam com seus bens.
É importante também a compreensão de que havia um grupo mais íntimo de homens, os doze, havia discípulos e discípulas que o seguiam aprendendo e testemunhando seus feitos (Lc.10; 19,37) e havia a multidão que o seguia. A multidão era a única sem compromisso discipular. (Lc 12,1-2; 12,22; 12, 54).
Outro último relato do evangelho de Lucas que merece atenção é a narrativa da Ressurreição. Um dos primeiros relatos sobre Jesus a circular entre os cristãos, por conta de sua fundamental importância. É a fé na Ressurreição o pilar da mensagem do Cristianismo. Em todos os evangelhos, a narrativa fundante de nossa fé não se modifica. São as mulheres que o seguiam, suas discípulas, as primeiras testemunhas. São elas também a receber uma ordem para anunciar que Jesus estava vivo. Lc 23, 54-24, 1-12.
Mais uma vez, é o próprio texto que permite a compreensão de que o seguimento é termo técnico discipular, porque seguir Jesus, isto é, peregrinar com ele da Galiléia a Jerusalém, implicava testemunhar milagres, testemunhar seus gestos, ouvir a pregação sobre o Reino e receber as orientações sobre qual era a vontade de Deus. As Marias e outras mulheres que estrategicamente observaram onde colocariam o corpo de Jesus, que esperaram o dia para cumprir o desejo afetuoso do coração para com o Mestre, foram até o sepulcro e viram os anjos que relembraram o que elas tinham ouvido do próprio Jesus desde a Galiléia.
“Lembrem-se de como Ele falou, quando ainda estava na Galiléia: O Filho do homem deve ser entregue nas mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia. Então, as mulheres se lembraram das palavras de Jesus. Lc 24, 7-8”. O texto é belíssimo ao afirmar que elas ouviram do próprio Jesus e elas se lembraram. E correram, destemidas, para anunciar.
Por que a memória de nossa presença protagonista e discipular foi apagada ou subestimada de nossa formação bíblico-teológica?
No caminho da Igreja, precisamos amarrar a narrativa da “fundação” da igreja com o evangelho de Lucas, já que os dois textos compõem o mesmo livro. Quando as mulheres correm para anunciar a Ressurreição, elas anunciam aos Onze e a “todos os outros” (v. 9). Bom, quem são esses outros? Na dispersão acontecida após a prisão de Jesus, muitos discípulos permaneceram juntos. Embora não tenhamos seus nomes, o texto apresenta desta forma: “Eram Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, Joana, outras mulheres” Lc. 24, 10 e 33.
Esse grande grupo de homens e mulheres, discípulos e discípulas, que, segundo, ainda, o relato de Lucas, testemunhou o aparecimento de Jesus entre eles e recebeu as ordens finais, que tiveram suas mentes abertas para entenderem as Escrituras e foram abençoados com a promessa do Espírito Santo, não eram apenas os Onze. Não eram apenas os Onze na assunção de Jesus. Assim como, no cenáculo, não estavam apenas os Onze, mas homens e mulheres que perseveraram unânimes, testemunharam com ousadia em Jerusalém, mesmo com os acontecimentos da crucificação ainda recentes. (ler todo o capítulo  24 junto com Atos 1).
O grupo de mais ou menos 120 pessoas, homens e mulheres, que estavam reunidos no cenáculo receberam o dom do Espírito Santo e começaram, homens e mulheres, a testemunhar junto aos romeiros da festa de Pentecostes em Jerusalém, as maravilhas de Deus nas línguas de cada etnia/nação. (Atos 2). A igreja que nasce sob o poder do Espírito de Jesus é uma igreja em que homens e mulheres estão em parceria em todos os aspectos da vivência cristã. Inclusive, dos ministérios ordenados na experiência dos últimos séculos. Isso porque, apesar da sociedade e da cultura neotestamentária ser patriarcal, Jesus e a comunidade dos salvos no início constroem uma outra realidade cultural, uma outra realidade religiosa sobre a presença das mulheres e sua participação legitima em todos os aspectos da igreja[7].
Por que a memória de nossa presença protagonista e formadora das comunidades primitivas foi apagada de nossa formação bíblico-teológica?
A realidade de que não há nenhuma distinção identitária ou ministerial entre homens e mulheres é um grande legado do Novo Testamento. E isso não é mais exceção que acaba na temporalidade do ministério de Jesus ou na experiência do Pentecostes, mas sim, a norma, a regra da “seita dos Nazarenos” e das igrejas cristãs.  Obviamente, a realidade e as novas bases religiosas do evangelho não estavam livres de tensionamento. No entanto, não há como negar que na apresentação da pesquisa exaustiva de Lucas, as mulheres são discípulas de Jesus e as mulheres participam igualitariamente do nascimento das igrejas primitivas e de sua expansão.  Atos 1, 12-15; 2,1-13- 2; 16-21.
Para que não houvesse sombra de dúvida da norma que se estabelecia na configuração das vozes dentro da igreja e a partir dela, Pedro cita a profecia de Joel 2, 28-29 dizendo que o que a cidade de Jerusalém acabara de testemunhar, na experiência com os 120 discípulos e discípulas, era o cumprimento da profecia. O cumprimento de uma profecia é, em termos gerais, o cumprimento da vontade de Deus na história. Nesse cumprimento profético não há exceção, mas a instauração de uma realidade nova que diz: “Naqueles dias, diz o Senhor, derramarei o meu Espirito sobre todas as pessoas. Vossos filhos e vossas filhas profetizarão[...]”. As filhas, discípulas, não se calaram desde então, mesmo que em posição distinta ao proclamado por Jesus e pela igreja nascente. Mesmo que a plenitude da profecia ainda não tenha sido alcançada na vida de todas as mulheres.
Quem silenciou a memória das mulheres no NT?[8]
Conclusão
Viviane Mosé, filósofa brasileira, utilizou o caranguejo apara fazer uma analogia sobre as mudanças de mentalidades que parece apropriada para falar da realidade nas comunidades de fé e denominações tradicionais, em especial, os Batistas, sobre a quantidade da presença feminina e a participação nos processos de decisão. Ela contou que o caranguejo possui um exoesqueleto que, conforme o envelhecimento do animal, tende a se soltar. Antes de se soltar completamente, um novo exoesqueleto começa a se formar. Por um tempo, os dois esqueletos convivem sobre o corpo do animal.
Ainda hoje estamos convivendo com a exceção e a norma, o cumprimento da profecia e o seu cerceamento. Os corpos das mulheres estão recobertos pelas duas realidades, os corpos/histórias ainda são o palco das tensões entre a cultura patriarcal e a cultura cristológica, as vozes femininas ainda são silenciadas nos processos de decisão, enquanto outras vozes insistem em falar por elas. Mas no decorrer do tempo que vivemos, gradativamente, e com esforço, ousadia, determinação e insubmissão, qual as mulheres do NT, seremos testemunhas do cumprimento da antiga profecia e da eterna vontade de Deus para nós, os que cremos.

BIBLIOGRAFIA SUGERIDA:
AQUINO, Maria P. A Teologia, a Igreja e a Mulher na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1997.
BRENNER, Athalya. A mulher israelita: papel social e modelo literário na narrativa bíblica. São Paulo: Paulinas, 2001.
FIORENZA, Elisabeth S. As origens cristãs a partir da Mulher: Uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992.
JOHNSON, Elizabeth A. Aquela que é: o mistério de Deus no trabalho teológico feminino. Petrópolis: Vozes, 1995.




[1] Tradicional é um termo relativamente vago para descrever as características das atuais igrejas evangélicas, já que muitas podem apresentar um corpo doutrinário escrito rígido e histórico, mas utilizar elementos pentecostais na pregação ou mesmo uma liturgia mais avivada e típica das liturgias pentecostais. Utilizamos o termo tradicional neste artigo para as denominações históricas herdeiras do protestantismo e não-pentecostais, independentes de suas experiências comunitárias.
[2] “A Bíblia é a Palavra de Deus em linguagem humana[...] Ela deve ser interpretada à luz da pessoa e dos ensinos de Jesus”. Declaração doutrinária da CBB.
[3] A eclesiologia paulina apresenta a igreja como comunidade de dons e serviços. A composição da igreja é isonômica, não havendo distinção de nenhuma ordem, nem mesmo gênero, na ocupação de ministérios. O único requisito é o Espirito Santo conferir este ou aquele dom conforme sua vontade.  E, como para Paulo, o ES é dado ao crente, todos os compromissos discipulares, todos os benefícios da Graça, todas as responsabilidades éticas são igualmente para homens e mulheres.
[4] Utilizamos protagonismo no sentido de que, apoiadas pelo discurso de Jesus, as mulheres lançam-se à vida pública sem os temores esperados à sua condição subalterna na sociedade patriarcal judaica. Quem escreve a história individual a partir de suas próprias escolhas, independente dos riscos, é protagonista de sua vida.
[5] O trabalho hermenêutico não é de ressignificação apenas, mas, sobretudo, de apontar a presença objetiva das mulheres no texto
[6] As parábolas do Reino são belíssimas para apresentar a parceria entre homens e mulheres na lógica divina, sem distinções de gênero. Em Lucas 13, 18-21, Jesus compara o Reino ao homem que pega a semente e a mulher que prepara o pão. Compara Deus ao pastor de ovelhas e a mulher que varre a casa. Lc 15, 3-10. Ensina sobre oração com a viúva insistente e com o fariseu e publicano, Lc 18. Veja também Lucas 10.38-42, Lucas 11, 27-28, Lc 23, 49; Atos 9, 36;  12.11,12, At 16.40, entre outros textos
[7] Participação legítima envolve a ocupação dos diversos ministérios na igreja. Há inúmeras igrejas domésticas e algumas delas lideradas por mulheres, como Lídia, em Filipos, entre outras. Diaconisas, evangelistas, apostolas, mestras, episcopisas, entre os outros ministérios possíveis. Nos últimos séculos utilizamos a expressão “ministério ordenado” com a intenção de distinguir o ministério pastoral como o temos hoje. Independente da compreensão atual sobre o pastorado, a lógica da análise ainda se estabelece, porque Jesus e a igreja que nasce, instauram outra compreensão sobre o papel religioso da mulher
[8] Sugerimos um estudo aprofundado do processo de institucionalização da igreja iniciado já no século II DC e consolidado nos séculos seguintes. No caso particular dos Batistas, o protestantismo de missão também deve ser levado em consideração na análise do apagamento da memória neotestamentária a respeito das mulheres.

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