sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

memória e história

Quando abrimos o texto bíblico, poucas vezes escolhemos narrativas cuja personagem é feminina. Acredito que seja um reflexo da nossa educação teológica que favorece e privilegia um anonimato feminino nas questões do texto bíblico. É quase como se não existissem lições teológicas positivas a aprender com as mulheres na Bíblia. Obviamente, isso é um erro. Então, naturalmente, os textos em que as mulheres protagonizam sempre me solicitam. É o que acontece com Marcos 14,3-9.
Prefiro a narrativa de Marcos a de Mateus e João por dois motivos: o primeiro, por ser Marcos o evangelho escrito mais antigo; o segundo, porque a mulher nesse evangelho não tem nome e o evangelista faz questão de explicar aos leitores aquilo que Jesus disse (v.8) sobre o ato da mulher. A explicação assinala a finalidade profética do gesto.
Uma das aproximações hermenêuticas da leitura dos evangelhos é encontrar a pergunta geradora da história narrada, isto é, recuperar a pergunta que originou na vida da comunidade a reunião daquelas histórias sobre Jesus em detrimento de outras. Diante de Marcos 14, a pergunta “provocadora” da história pode ser recuperada pela finalização dada por Jesus. Jesus ensina a todos os presentes, na casa daquele homem considerado impuro, que o feito da mulher deveria ser lembrado em todos os lugares onde as boas novas do Cristo fossem anunciadas. A história, então, foi contada por causa de um pedido de Jesus: preservar os feitos da mulher que o serviu de forma tão generosa e profética. Talvez a outra pergunta necessária seria, por que para Jesus era importante construir essa memória? Intuo possibilidades de resposta. Ministério é serviço. Mas também é movimento. Mover-se, desinstalar-se, é condição necessária ao exercício de nossas vocações e ministérios. Jesus disse aos seus outros discípulos e ao anfitrião do jantar que aquela mulher havia lhe servido, realizado uma boa obra. E as obras que as mulheres executam no Reino em geral sofrem com a crítica, o desrespeito e as proibições colocadas pelos discípulos do Senhor, mas não pelo Senhor. Essa distinção é fundamental para a compreensão de muitos obstáculos à realização plena da obra que está em nossas mãos para fazer e que, para tal, exige a ultrapassagem de certos interditos culturais e religiosos.
O Jesus dos evangelhos tem garantido às mulheres o espaço para servir. Por muito tempo descansamos nessa verdade sublime. Mas chamo a atenção para o fato de que essa lição está incompleta. O que Marcos não pode deixar de registrar como resposta a segunda pergunta é que Jesus censura os que não entenderam, criticaram e tentaram impedir a boa obra daquela mulher e isso também deve ser lembrado para que não se repita de novo na igreja do Senhor. Mas como tem se repetido! E se o gesto da mulher foi profético para anunciar a morte do Cristo e sua ressurreição, foi igualmente profético na coragem de servir e construir uma memória sobre seu feito e sobre a tentativa de proibição censurável dos discípulos de Jesus ao mesmo feito.  
Ainda é importante celebrar, nesse tempo, a memória dos feitos das irmãs em ministério, nos campos missionários, nas igrejas, em todo lugar, cumprindo a missão que receberam e as movimentam. No entanto, também é necessário trazer a outra memória que o texto aponta: a ação dos discípulos de Jesus em criticar, em tentar silenciar e invalidar o gesto daquela mulher, foi censurada pelo Mestre no passado e continua sendo censurável hoje. 
Por que não registramos nossa memória? por que não registramos a memória completa? É preciso construir nossa visibilidade! Mais outro exemplo: alguns discípulos tem usado um discurso de que as pastoras são ordenadas apenas para a igreja que solicitou sua consagração, ou seja, elas não são pastoras do ministério batista. E ainda outro: o silenciamento na educação teológica da possibilidade das mulheres que fazem teologia serem também pastoras ao final do curso, caso tenham essa vocação. Por que não fazemos um grande movimento memorialístico para dar memória de nossas boas obras,  histórias ministeriais, seus desafios e vivências, suas trajetórias vocacionais? E por que não evidenciar a censura dada por Jesus aos seus discípulos? Censura que se estende também aos atuais discípulos do mesmo mestre.

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