Maria : Devoção e Justiça

Estudo para a Revista Compromisso-DCC

Maria: devoção e justiça.
Pastora Silvia Nogueira

Uma poética introdução
O canto de Maria[1]

Eu preparo para o meu filho
Mantas, roupas e camisas
Vestidos de ver o mundo
Tecidos de subversão.
Os ricos e poderosos
Arrancados de seu poder
Costuram o enxoval
Dos pobres que vão nascer
Messias do que já é.

Os famintos e os pequenos
Se levantam num cobertor
Pra aquecer meu menino
Que vai nascer nesse frio
Da sombra de tronos e reis
Derrubados pra se fazer teto
Pra o meu menino morar.

E eu...canto a glória de Deus
Que habita meu ventre cheio
Enquanto espero o dia
De ver meu filho nascer.

Podemos parodiar a expressão cristológica “Em memória de mim” para “Sem memória de mim”, no que diz respeito à presença de Maria como exemplo de fé entre nós. Parte deste embotamento se deve a nossa herança Reformada. Maria é deificada entre os cristãos católicos e marginalizada entre os cristãos evangélicos. No entanto, há um acolhimento afetuoso da figura de Maria com as mulheres de todos os tempos. Assim como, também nos homens ela exerce fascínio. Uns, por valorizar o calor do útero messiânico. Outros, pela recusa, ao entender seu papel na história da salvação como grandioso demais para uma mulher. O povo, porém, elegeu-a desde o início do segundo século da era cristã, não apenas uma mulher comum (se é que são comuns as pessoas), mas  representante de uma experiência com Deus que encontra eco no coração do crente. Maria é modelo de um tipo de fé geradora de obediência, coragem e “encarnação”. Neste estudo, vamos olhar para ela como os textos dos Evangelhos nos apresentam, Maria é uma jovem mulher;  judia e mãe.
Mulher forte - Mulier fortis

Foi Irineu , bispo de Lyons no segundo século da era cristã o primeiro a fazer o paralelo entre Maria e Eva como modelos de obediência e desobediência, respectivamente. Desde a Reforma rejeitamos a fé em Maria e sua valorização teológica, mas herdamos o imaginário e não nos desapegamos, de tê-la como arquétipo de mulher submissa e mãe, e Eva como o seu oposto. O texto bíblico, porém nos ilumina em outra direção, convida-nos a ouvir a expressão singular retirada do diálogo com o anjo Gabriel. Maria foi  uma “mulher agraciada” ou “cheia de graça”. Como ela própria o fez, nos indagamos que saudação seria aquela do anjo Gabriel (Lc 1.29). O que a diferenciaria de outras naquele momento ? Creio que o próprio texto pode nos dar pistas para responder. Maria era “cheia de graça” porque:
  1. Tinha o que oferecer a Deus (Lc 1.28 e 30)- Maria era uma jovem com os mesmos desafios e projetos de outras jovens mulheres de seu tempo (constituir uma família, respeitar as leis mosaicas), mas à semelhança de Cornélio (At 10.1-4) o qual também achou graça diante de Deus, ela zelava por si. Tal qual Cornélio, Maria deveria possuir uma religiosidade sincera, um coração disposto a fazer as boas determinações de sua crença. Ela não era “boa por natureza”, mas havia construído como o centurião, uma memória diante de Deus.  O que é a memória senão o “álbum de fotos” dos momentos de nossa vida? E na vida de Maria havia algo que a distinguiu diante de Deus.
  2. Tinha coragem para acolher o mistério (Lc 1.34 e 37,38). Maria não teve uma experiência extática na qual perdia o sentido da realidade. Havia em sua experiência, espaço para a reação já que ela questionou o mensageiro de Deus dizendo: “Como se fará isto, se não conheço varão”? Isto é, todo o seu mundo social conspirava para frustrar este anúncio. Ela era noiva, mas não estava casada. Qualquer outra possibilidade seria uma transgressão às leis com graves conseqüências, logo, acatar a fala do anjo era se lançar em um projeto perigoso. A narrativa segue e Gabriel anuncia outro fato “maravilhoso” que Maria poderia testificar (como o fez),  a gravidez de sua prima Isabel. Parece que a fala-resumo do mensageiro de Deus: “Para Deus nada é impossível” é o argumento final que Maria conscientemente aceita. Ora, o que seria tudo isso, como e quando aconteceria? Nada foi esclarecido em detalhes porque o agir de Deus não pode mesmo ser explicado, mas Maria disse : “Cumpra-se em mim segundo tua palavra”.
Maria portanto, não era uma devota cega, mas possuía uma fé encarnada na qual se colocava como sujeito, mesmo que o interlocutor fosse um enviado de Deus. Ela perguntou, avaliou os riscos e decidiu se lançar naquilo que está em parte revelado, em parte escondido. Também não era submissa, no sentido de subserviência sem alternativa. Seu modelo de fé é aquele que mesmo não vendo tudo, não sabendo tudo, lança-se à experiência que Deus propõe, acreditando que algo especial irá acontecer (seu filho salvará o povo de seus pecados).


Serva do Poderoso ou Filha de Sião
Maria teve a experiência religiosa mais intensa e significativa que uma pessoa poderia ter. No entanto, diferente de muitos crentes deste tempo isto não significou que as preocupações do mundo, da sociedade, seus apelos e urgências não se transformassem em objeto de seu interesse e discurso. Podemos verificar dois exemplos de comprometimento dela com as questões de seu tempo. O primeiro, no canto atribuído a ela no evangelho de Lucas e o segundo, sua presença em um necessário  momento de coesão entre os discípulos de Jesus e a conseqüente formação da igreja em Jerusalém :
  1. A exultação no MagnificatNão há revolução sem cânticos porque a música pode condensar as muitas expectativas em uma única letra e voz. No canto pode-se unir a experiência individual à coletiva. Na história de Israel vários foram os momentos em que esta união se deu. O Magnificat  ou o canto de Maria, por exemplo, possui muitas semelhanças com o canto de Ana (1Sm 2.1-10). Nos dois cantos, o vivido intimamente por estas duas mulheres está colado a uma realidade maior, a própria história de lutas e expectativas  de seu povo. É muito importante perceber que nossa experiência religiosa nunca está descolada da realidade concreta. E é assim que o canto, motivado pela alegria pessoal, não perde de vista a alegria de outros. Maria era uma jovem camponesa que morava em Nazaré, na Galiléia, aldeia de mais de 500 habitantes, marginalizada por motivos religiosos e políticos. Vivia sob o domínio do Império romano, estava submetida às leis de César e era pobre. Com isto, temos um perfil não apenas dela, mas da maioria dos judeus de seu tempo. Nos versículos de Lucas 1.48-53, ela anuncia que Deus está comprometido com os humildes, os fracos, os pobres e necessitados. Deus pratica justiça no interior daqueles que são soberbos e, sobretudo, Deus pratica justiça social.
  2. Participação no movimento revolucionário – Não percamos de vista que era assim que os discípulos(as) de Jesus eram vistos por líderes judeus e romanos. Os cristãos foram considerados pelos judeus como seita dos nazarenos e pelo Império como ameaça a César. Quando Jesus foi preso e morreu, houve grande dispersão de seus seguidores. Nos dias que se seguiram a Ressurreição até a ascensão, muitos ainda não haviam crido ou renovado a sua esperança nas palavras de Jesus. Maria e outros discípulos e discípulas, quase 120 pessoas, ficam juntos , aguardando a promessa de Jesus e participam de um Pentecostes diferente, fundando definitivamente aquilo que chamamos de igreja (At 1.13,14 e 2).



Mãe sofredora – mater dolorosa
A releitura dos tradicionais papéis dados socialmente entre os gêneros se, por um lado, podem provocar temor, por outro, tem dado a possibilidade rica e sagrada de não somente às mães, mas também os pais se sentirem comprometidos com a formação afetiva, social e religiosa dos filhos. No entanto, ainda para muitos, o modelo de cuidado com os filhos, o modelo de um amor incondicional é conferido à maternidade. Por esta perspectiva então, olharemos para Maria como uma mulher que vive a maternidade em toda sua beleza e dor (Jo 16.21). A história desta maternidade inicia-se de uma forma obscura como já vimos. Na sociedade judaica de então como até hoje, sua experiência causou espanto, por mais elevados que tenham sido os propósitos divinos. José teve medo e desejou deixar Maria e, caso fizesse isso,  significaria uma vida de muita humilhação para ela (Mt 1.18-20) e até, apedrejamento por adultério. Passada a primeira tensão com José e seus parentes, o que Maria teve pela frente foi uma história ainda mais sobressaltada (Lc 1.30). Ameaças de morte (Mt 2.7-14) e uma vida de dificuldades com a preocupação constante com o mantimento, a segurança e a integridade de seus filhos, em meio a condições nunca ideais (Mc 3.31-35; Lc 2.39-52; Jo 19.25-27). Como mãe precisava conviver com as decisões de Jesus, mesmo que não as compreendesse e temesse por ele (Mc 3.21; Lc 2.19 e 51; Jo .1-3). Além de desfrutar da admiração pelas realizações e pelo lugar que seu filho mais velho vai assumindo em sua sociedade (Lc 2 33-35), ela teve que acompanhar impotente sua via crucis . Quando ele morreu, chorou aos pés da cruz (Jo 19.25). Contudo, Maria desejou viver esta maternidade em toda a sua plenitude. Ela acolheu o conflito como algo que merecia ser vivido, entendendo os limites de seu cuidado, mas assumindo o papel de ter formado uma família que seria instrumento de Deus para mudança do mundo.


Conclusão

A personalidade feminina mais representada na história , nas artes e na música , além de ser o nome feminino mais pronunciado no Ocidente é Maria. Tudo isto tem seu lugar e motivo os quais não devem ser nem desprezado, nem ignorado. Precisamos visitar Maria mais vezes em nossas pregações e estudos já que ela é um dos bons exemplos da Palavra de Deus para demonstrar que devemos estar sempre de joelhos diante de Deus, dizendo sim as convocações divinas para mudar a nossa vida e a realidade que nos cerca, e que nossos joelhos jamais se dobrem aos homens quando isto representar o medo, a miséria e o distanciamento do Reino de Deus entre nós.


Para conhecer mais:
FAIVRE, Alexandre. Os leigos nas origens da igreja, Rio de Janeiro:Vozes, 1992.
FLUSSER, David. O judaísmo e as origens do cristianismo. Vol.1, Rio de Janeiro: Imago, 2000.
OLIVEIRA, Zacarias de. Três cânticos da revolução. Porto:EPS, s/d.
PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos-seu papel na história da cultura, São Paulo:Cia. Das letras, 2000.
TAMEZ, Elsa. As mulheres no movimento de Jesus, o Cristo. São Leopoldo:CLAI/Sinodal, 2004.





[1] Poema de Nancy Cardoso Pereira IN: Amantíssima e só- evangelho de Maria e as outras. São Paulo: Olho d’água, 1999.
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